10.12.2004

PLE apresenta - A verdadeira história de Manuel da Silva -parte II

A verdadeira história de Manuel da Silva -parte II

O Velório:

Sete pessoas cercavam o caixão que se encontrava ao centro da sala. Manuel da Silva estava mais tranquilo que nunca e raramente bem vestido. Permanecia imóvel e pálido com as duas mãos cruzadas sobre o peito.
O seu advogado tinha tratado de tudo, satisfazendo os seus últimos desejos. Os seus sapatos brancos, de verniz, eram da cor do fato. O seu casaco, da mais pura seda tailandesa, tinha três grandes botões que se confundiam com o azul da camisa. Ao pescoço, atado com um nó cego, o cachecol que havia pertencido ao seu avô. Desfiada nas pontas e rota em alguns sítios, a malha azul e branca era uma herança religiosamente guardada. No bolso esquerdo do casaco estava um comando de televisão negro, com um grande ecrã e muitos botões coloridos, e presa no outro bolso estava pendurada a sua carteira de jornalista.
Junto à porta, sentados, estavam três colegas de trabalho, jornalistas na Sportv, murmurando entre si:
- Era um profissional competente.
- Sim, sem dúvida. Mas tinha um feitio terrível.
- Já se sabe a causa?
- Acho que não. Só sei que foi uma morte misteriosa.
- É uma pena. Perdeu-se um profissional com um futuro promissor... uma grande perda para o jornalismo desportivo.
Na ponta oposta da sala encontravam-se os seus dois melhores amigos, visivelmente abalados, fardados a rigor como era a vontade do falecido: camisas de listas azuis e brancas enfiadas dentro dos calções azuis, e meias com riscas horizontais com as cores das camisolas. Notava-se que estavam embriagados pois não eram capazes de permanecer imóveis. Antes pelo contrário, ondulam frequentemente, como se estivessem dentro de um barco perdido no mar alto. Haviam prometido acompanhá-lo, sem descanso, sem proferir uma única palavra, até ao momento em que a terra o tapasse na sua última morada.
Perto do caixão as duas únicas mulheres da sala sobressaem como benfiquistas nas bancadas da Juve Leo, sós e alienadas.
Aos pés do morto, uma jovem alta, de curtos e modernos cabelos castanhos, envergava com pose de femme fatale um revelador vestido preto de corte invulgar, calçando luvas que a escondiam até aos cotovelos. Os seus lábios, esticados em beicinho, espelhavam uma certa excitação por aquele momento. Remexia com frequência na mala que tinha pendurada no ombro. Lá dentro ajeitava com a mão um bilhete de avião, que olhava constantemente, lendo o seu nome: Diana Meireles.
A outra, uma magra mulher pasmada, afagava os cabelos espetados do defunto. Aparentemente calma, a sua face reflectia uma seriedade gélida, indiferente à dor geral. A capa que a cobria até à sola dos sapatos confundia-se com os seu longos cabelos, dando a sensação de uma nuvem escura, sinistra, pairando no topo do caixão. Não transparecendo, sentia-se desconfortável. Com muita mestria disfarçava o sentimento de sufoco que as paredes lhe infligiam. Na sua cabeça várias vozes murmuravam o seu nome: Madalena, Madalena...
Manuel da Silva, Diana Meireles e Madalena Tábuas, tinham sido colegas no curso de Comunicação Social e todos trabalhavam na televisão, os únicos daquele ano a conseguirem emprego, depois da grande tragédia. Na volta da viagem de finalistas ao Brasil, o avião que os transportava despenhou-se derivado a uma avaria técnica causada por um telemóvel, sobrevivendo os três a tamanho desastre. Nesse dia fizeram a promessa de se ver, através de uma ligação televisiva, todos os anos à hora do acidente, durante meia hora. No dia treze de Fevereiro, às vinte e uma horas, três câmaras ligavam-se para transmitir as imagens que lembravam aquela data fatídica.