10.13.2004

PLE apresenta - A verdadeira história de Manuel da Silva -parte III

A verdadeira história de Manuel da Silva - parte III

O pastel que mata:

Dos três Diana distinguia-se por ser a mais predatória das criaturas. Na amizade e no trabalho, quando ferida no âmago do seu orgulho, revelava-se um verdadeiro tubarão, uma gladiadora implacável, sem pares, gritando na arena “ glória ou morte”. Era preciso ir muito fundo para conhecer a armadura que impunha com todos, necessária para proteger o coração empedernido dum ressentimento castrador. Mas não era em vão que tinha ido ao velório do Manuel. Esta seria a última oportunidade de saldar os resquícios da mágoa. Ao contrário do Manuel, Diana sabia guardar segredos até os insignificantes. Ele disse muita coisa, porque conhecia muito dela. Parecia que a vontade de revelar verdades ocultas já nos tempos da faculdade se sobrepunha à amizade. Mas não ela .Não Diana, que sabia até que comia sem excepção todos os dias um pastel de nata.
- Que promessa mais estúpida. – pensou Diana enquanto olhava o defunto e os amigos embriagados à sua direita - Contaste-me que desde pequeno tinhas esse hábito, muito por causa da tua avó. Não havia dia em que faltasse o pastel e a colher para comeres primeiro o recheio. Sobretudo depois da morte dela a quem prometeste nos instantes que precederam esse afastamento inconciliável, manter este ritual ao longo da tua vida. Trocámos segredos, mais do que aqueles que me consigo lembrar. Há contudo um que continua presente e não se dissipa, tal como as marcas que ficaram gravadas no meu corpo . Como se não bastasse o que a tua mãe me fez. As reguadas sucessivas, tão injustamente sucessivas. Tudo consequência desse feitiozinho. Mentiste à tua mãe, incendiaste-a contra mim, tudo porque não pude aceitar o teu amor. Por causa dessa tua inveja ainda hoje tenho a única imperfeição do meu corpo, nas minhas mãos . Estes cortes fizeram-me desejar a tua morte que agora festejo. Marcaste-me, e agora fui eu que marquei o teu destino. Tinha de te ver sofrer, e aos teus amigos. Gozaram comigo. Agora é a minha vez... Esperei vários anos por este momento, mas nunca consegui encontrar uma ocasião para me vingar. Não vi o que estava à frente dos meus olhos. O crime perfeito, a gula foi o teu pecado mortal.
- Como de costume neste dia, 13 de Fevereiro, trocámos as nossas prendas. Deste-me um inocente ramo de flores, e eu o que tu não esperavas. Sabia que ias ficar contente. Era o pastel mais bonito que já tinhas visto, cremoso, tostadinho como tu gostavas. Deu muito trabalho para o conseguir. E ainda mais trabalho tive para arranjar um veneno que não deixasse marcas. Não fui trabalhar. Esperei que a câmera se ligasse e que chegasses a casa. Como acontece todos os anos , poucos minutos antes das nove , entraste na sala, sem acender a luz, abraçando as garrafas que afogavam a tua solidão. Pousaste-as na mesa, e de um dos largos bolsos do robe tiraste o embrulho que te ofereci. Lá dentro tinha posto uma colher que tu retiraste com um sorriso. Eu tinha me lembrado. Aproximaste-te da câmera e como se eu estivesse ali , com uma lágrima no olho beijaste-me. Idiota. Naquele momento eras o homem mais feliz do mundo, aumentando a tua felicidade de cada vez que levavas a colher à boca. Julgavas que alimentavas o nosso amor, mas era o meu desejo pela tua morte que ia ficando satisfeito. Mesmo quando, depois de acabares o pastel, te engasgaste, olhaste para mim como se eu te pudesse e quisesse ajudar. A medida que esperneavas, ias-te afundando no sofá, gasto e roçado como tu, ambos com tempo a mais de vida.

No silêncio angustiante da casa mortuária, a excitação de Diana berrava a sua glória, feita da morte de Manuel da Silva.