10.21.2004

PLE apresenta : Onrop - O espelho: Smack my bitch up (editors cut). The first act

A 20 kms da bilheteira, no sentido norte-sul da linha 1, estava uma mala esquecida. As iniciais mostravam um PB e os cds, as biblias e as ligas das meias da Sónia Araújo não me deixaram dúvidas acerca do seu proprietário da valise. Se não o sabem até agora, também não sou eu que vou dizer.
Mas isto não interessa. O que é importante é um escrito lá encontrado. Prosa bela. De novo, as iniciais JJ dão ponta sobre a identidade do autor.
Esforços de memória e algum exercicio mental podem acertar o contexto em que esta foi escrita. É o que tento fazer. Peguei na pá e vou continuar a escavar mais, até descobrir o verdeiro nome de JJ. Até lá, leiam, já que PLE vos apresenta:


Onrop - O espelho: Smack my bitch up (editors cut)


A viagem

Encontro os dois despidos. O brutamontes avança na minha direcção, deixando Salomé enrolada ao lençol desejando que eu abandone o quarto. Uma força sobrenatural não me deixa recuar, mesmo quando o homem, do tamanho de um grande armário, estala os seus dedos com ar ameaçador. Precipito-me sobre ele agarrando–lhe os cabelos com uma mão, deixando a outra para lhe bater com um soco, furioso e certeiro. Depois o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto... aprendo a gostar do sabor a sangue, que me salpica a face, e alio a este prazer os pedidos de Salomé para que eu pare, enquanto abana o meu ombro chamando pelo meu nome:
- João, João... João. Acorda.
- Hum?
Abro um olho e vejo Samuel, o meu melhor amigo, abanando a cabeça com ar de reprovação. Todo aquele aparato não passava de um sonho, embora eu o desejasse ao ponto de me parecer bem real.
- Por onde tens andado nesta semana? Ninguém te vê. Faltas aos ensaios e não atendes o telefone. Não me digas que te esqueceste que vamos para a Alemanha?
Samuel conhece-me há muitos anos. Sabe que desapareço sem dar notícias sempre que tenho uma grande desilusão, ou tristeza. Sabe que me fecho no meu canto isolado, em sofrimento. Preocupado, espera que eu o procure, o que raramente acontece...
- O quê? Vamos esta semana? – pergunto, esfregando os olhos com as costas das mãos.
- Não acredito. Trabalhámos tanto para conseguir esta tourné, e nem sabes que partimos hoje.
- Eu sabia! E mesmo que não soubesse alguém me haveria de vir buscar! Não iam partir sem mim.
- Pois! Fia-te na virgem... Vê mas é se tomas um banho, que a viagem é longa. Tu tresandas...
- Espera lá? Como entraste? Interrompi-o, para parar o sermão que nada me interessava, adivinhando já a resposta.
- Deu-mas Salomé. Sabes o que disse? Não te perdoa nem que te mascares de abelha Maia. Depois do escândalo que fizeste em casa dos pais dela... esquece-a! Não te chegou faze-la sair daqui a chorar? Tinhas de ir lá enxovalhá-la ainda mais. Todos tinham de ouvir, não era?
- Essa tem graça! Então não me perdoa!? Põe-me os cornos, sem nada me dizer antes ou depois, e ainda quer que lhe peça desculpas. Essa é boa. Traiu a base de confiança da nossa relação... não me disse nada... devia matá-la...
- Sim João, sim... tens toda a razão – disse naquele tom de fim de conversa, como que me dando razão, mesmo pensando que eu não a tinha.
- Viste o carro dos cotas? – pergunto sorrindo, na tentativa frustrada de o pôr do meu lado.
Finge que não me ouve e diz que me vêm buscar às dez, encaminhando-se para a porta. Sai.
Ponho-me de pé, embora por pouco tempo devido às réstias das tonturas da noite passada. Notam-se os vestígios na roupa espalhada por todo o lado, nas garrafas tombadas, pelo chão e na mesa que tenho dois metros em frente à cama. Dirijo-me para bancada da cozinha. Junto a uma garrafa de vodka semi vazia encontram-se fotografias espalhadas. São as fotografias que me revelaram a traição de Salomé. Um antigo namorado. Forte, meigo e inteligente, qualidades que não tenho e dispenso. Muitas poses, muitos sorrisos, muita felicidade, ainda que aparente.
Eu é que a sei fazer feliz. Mais ninguém é capaz disso. Engana-se. Dei-lhe tudo, querendo em troca sinceridade e coragem. Não lhe pedi que deixasse de fazer aquilo que queria, apenas que me contasse todos os pormenores depois, tal como eu fiz, das várias vezes que me envolvi com outras mulheres. Não tenho a culpa que Salomé me fosse fiel. Não foi isso que lhe exigi. Aquela pêga mentirosa transformou um sentimento de amor sincero em ódio. Preciso de a esquecer e seguir a minha vida.
Bebo o que resta do vodka enquanto olho em redor à procura de algo para comer. Tirando os restos colados à pilha de loiça por lavar, não vejo nada comestível. Talvez no frigorífico? À medida que pouso a garrafa, já vazia, reparo nas caixas de plástico e cartão espalhadas por todo o estúdio. Recordo que há três dias que encomendo comida, porque o que está em casa está vazio, ou cheira muito mal. Rebusco as caixas de pizza à procura de alguma fatia que tenha sobrado. Acentua-se o meu cansaço quando me dobro, em busca da fatia perdida - que procuro para adiar a minha saída de casa. À segunda tentativa encontro metade de uma fatia numa caixa mole. Queijo e cogumelos, com leve aroma a vinho tinto, que pinta a caixa. Tão depressa dei a dentada como rapidamente voei em direcção à casa de banho, albarroando pelo caminho a mesa repleta de garrafas. A emergência de vómito não se concretizou. O meu estômago vazio apenas permitiu, para além da dentada, um liquido fino, espesso e verde. Descanso e adormeço. Acordo não sei quanto tempo depois no chão da casa de banho. Ergo-me, olho-me ao espelho e vejo que uma tatuagem me cobre a cabeça, um misto de verde e vermelho com formas confusas, percebendo-se apenas várias cobras, que parecem ter ganho vida.
- Mas como..
Não consigo proferir mais nenhuma palavra. Não me consigo mexer, sinto que os músculos se contraem. Estou a transformar-me em pedra e vou morrer. Falta-me o ar.
Precipito a cabeça no lavatório cheio de água, levantando-a consigo respirar. Olho-me ao espelho e já tenho cabelo, como sempre. Não compreendo o que se acabou de passar. Saio da casa de banho, ainda com a respiração pesada, e, olhando para a caixa pintada de tinto lembro-me que tinha juntado um ácido no vinho. Agora terei de me aguentar.
Apercebo-me que estivera à beira de arruinar o meu futuro, por alguém que não merecia, chegou a altura de pensar em mim. Agarro nas baquetas, dirijo-me para a bateria, decidido a esquecer Salomé. Uma batida frenética, e aparentemente desgovernada, soa pelo estúdio, depois de berrar o que queria esquecer... encarando os bombos e tambores como inimigos, nos quais eu tenho prazer em bater...